terça-feira, 16 de abril de 2013

Sócrates: aquele que vive nas nuvens


Leitura e Análise de Texto
Outra célebre vítima do preconceito e da intolerância contra a Filosofia foi Sócrates. E neste caso as consequências foram muito mais sérias, visto que o levaram à morte.
Na realidade, não há uma imagem única de Sócrates. Isso porque todas as informações que temos dele nos chegaram por testemunhos indiretos, já que ele mesmo nada escreveu. Assim, enquanto seus amigos, admiradores e discípulos, como Xenofonte e Platão, por exemplo, o viam como sábio, patriota, respeitador das leis e da religião, piedoso, justo, valoroso como guerreiro nas batalhas etc., seus críticos o retratavam como uma pessoa esquisita, deslocada, excêntrica, charlatã, corruptor de jovens e ímpio.
De todos esses testemunhos pouco elogiosos sobre Sócrates, sem dúvida o mais significativo que chegou até nós foi a imagem dele traçada por Aristófanes1 na comédia As nuvens.
Neste texto, aparece um Sócrates “se movendo livremente, proclamando que caminhava no ar e dizendo uma plêiade de outras tolices” das quais não entende nada2. É um Sócrates mestre dos sofistas, isto é, charlatão, enganador e que ensinava às pessoas a arte desse engano.
Aliás, essa imagem dos sofistas também era, em boa medida, preconceituosa. Na peça de Aristófanes, ele surge em cena empoleirado em uma cesta suspensa no ar, significando que ele vivia nas alturas, preocupado com questões de cosmologia e de astronomia (movimento dos astros, origem do universo etc.), ou com assuntos sem a menor relevância, como a medida do pulo de uma pulga, ou se o zumbido de um mosquito é produzido por sua tromba ou seu traseiro, ficando totalmente alheio aos problemas realmente importantes da vida dos cidadãos de Atenas. A certa altura, um dos discípulos conta que, certa vez, “uma lagartixa atrapalhou uma indagação transcendental” de Sócrates.
Isso aconteceu, segundo o relato, quando ele “observava a lua para estudar o curso e as evoluções dela, no momento em que ele olhava de boca aberta para o céu, do alto do teto uma lagartixa noturna, dessas pintadas, defecou na boca dele”3.
Essa imagem depreciativa e até cômica de Sócrates provavelmente revela a ideia que a maioria das pessoas tinha a respeito dele e dos filósofos em geral. No entanto, é uma imagem bastante distorcida. Na realidade, Sócrates e os sofistas inauguram um novo período na história da Filosofia em que a reflexão filosófica se desloca da cosmologia e da física (princípio que dá origem a todas as coisas) para as questões relativas à vida concreta na cidade (pólis), isto é, à política, à ética, ao conhecimento. Os assuntos que ele gostava de abordar eram a justiça, a beleza, a coragem, o amor, a educação, entre outros. Vem daí, aliás, a denominação de pré-socráticos atribuída aos filósofos anteriores a ele. Não tanto por razões de cronologia, mas principalmente pela diferença quanto aos temas da reflexão filosófica.
Além disso, no que se refere aos sofistas, Sócrates tinha, certamente, muito mais diferenças e mesmo divergências com eles do que semelhanças. Enquanto os sofistas se apresentavam como sábios, isto é, pessoas entendidas em diversos assuntos, especialmente na técnica da retórica, Sócrates dizia: “Sei que nada sei”; enquanto os sofistas cobravam pelos ensinamentos que ministravam, Sócrates condenava essa prática e filosofava com as pessoas gratuitamente na praça (ágora) de Atenas; enquanto os sofistas eram céticos em relação à possibilidade de se conhecer a verdade universal, Sócrates a perseguia incansavelmente; enquanto os sofistas contentavam-se com a opinião (doxa), Sócrates exigia o saber verdadeiro (episteme).
A respeito dos sofistas, diz Sócrates ironicamente por ocasião de seu julgamento: “Cada um desses homens [...] é capaz de dirigir-se a qualquer cidade e persuadir os jovens, os quais podem se associar, segundo queiram, com qualquer de seus concidadãos sem pagar, a deixar a companhia dessa pessoa para se juntarem a ele, remunerá-lo e, além disso, mostrar-lhe gratidão”4.
Vemos, assim, que a imagem de Sócrates traçada por Aristófanes, procurando retratá-lo como alguém que anda nas nuvens, preocupado com assuntos alheios ao cotidiano das pessoas e identificado com os sofistas, não corresponde à verdade sobre ele. Ao contrário, baseia-se em um preconceito, a exemplo do que ocorrera com a anedota sobre Tales. É interessante observar que em seu julgamento Sócrates faz menção à comédia de Aristófanes (As nuvens) como um dos fatores que provocaram as acusações contra ele.5
1 ARISTÓFANES. As nuvens; Só para mulheres; Um deus chamado dinheiro. Tradução Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 11-101.
2 PLATÃO. Apologia de Sócrates. Diálogos socráticos III. Tradução Edson Bini. São Paulo/Bauru: Edipro, 2008. p. 139-140 [19 c].
3 ARISTÓFANES. Op. cit. p. 21.
4 PLATÃO. Op. cit. p. 140 [19 e–20a].
5 Idem, p. 139 [19c].

RESPONDA AS SEGUINTES QUESTÕES:

1. A comédia e o humor podem ser formas de propagação de preconceitos? Justifique sua resposta e, se possível, dê exemplos.
2. Essas formas de manifestação artística e cultural são importantes para a democracia? Justifique.
3. Você vê alguma semelhança entre o papel da comédia no tempo de Sócrates e o dos programas humorísticos atuais? Dê exemplos e comente.

PESQUISA INDIVIDUAL
Faça uma pesquisa para responder às seguintes questões:
1. O que foi a comédia e qual a sua importância para a democracia ateniense? Cite alguns dos principais comediógrafos e suas obras.
2. Pode-se afirmar que a imagem de Sócrates construída por Aristófanes é preconceituosa? Por quê? Em que sentido?
3. Como era a democracia ateniense e em que ela se diferencia da democracia brasileira atual?
4. Quais são as principais diferenças entre Sócrates, os filósofos pré-socráticos e os sofistas?
5. Discuta brevemente com um colega sobre a seguinte questão: Como é possível alguém ser a pessoa mais sábia que existe e, ao mesmo tempo, ser também alguém que nada sabe?
Utilize o texto a seguir para embasar esta discussão.



Prof. Manoelito


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