Leitura e Análise de Texto
Outra célebre
vítima do preconceito e da intolerância contra a Filosofia foi Sócrates. E neste
caso as consequências foram muito mais sérias, visto que o levaram à morte.
Na realidade,
não há uma imagem única de Sócrates. Isso porque todas as informações que temos
dele nos chegaram por testemunhos indiretos, já que ele mesmo nada escreveu. Assim,
enquanto seus amigos, admiradores e discípulos, como Xenofonte e Platão, por exemplo,
o viam como sábio, patriota, respeitador das leis e da religião, piedoso,
justo, valoroso como guerreiro nas batalhas etc., seus críticos o retratavam
como uma pessoa esquisita, deslocada, excêntrica, charlatã, corruptor de jovens
e ímpio.
De todos
esses testemunhos pouco elogiosos sobre Sócrates, sem dúvida o mais
significativo que chegou até nós foi a imagem dele traçada por Aristófanes1 na
comédia As nuvens.
Neste texto,
aparece um Sócrates “se movendo livremente, proclamando que caminhava no ar e
dizendo uma plêiade de outras tolices” das quais não entende nada2. É um
Sócrates mestre dos sofistas, isto é, charlatão, enganador e que ensinava às
pessoas a arte desse engano.
Aliás, essa
imagem dos sofistas também era, em boa medida, preconceituosa. Na peça de Aristófanes,
ele surge em cena empoleirado em uma cesta suspensa no ar, significando que ele
vivia nas alturas, preocupado com questões de cosmologia e de astronomia
(movimento dos astros, origem do universo etc.), ou com assuntos sem a menor
relevância, como a medida do pulo de uma pulga, ou se o zumbido de um mosquito
é produzido por sua tromba ou seu traseiro, ficando totalmente alheio aos
problemas realmente importantes da vida dos cidadãos de Atenas. A certa altura,
um dos discípulos conta que, certa vez, “uma lagartixa atrapalhou uma indagação
transcendental” de Sócrates.
Isso
aconteceu, segundo o relato, quando ele “observava a lua para estudar o curso e
as evoluções dela, no momento em que ele olhava de boca aberta para o céu, do
alto do teto uma lagartixa noturna, dessas pintadas, defecou na boca dele”3.
Essa imagem
depreciativa e até cômica de Sócrates provavelmente revela a ideia que a maioria
das pessoas tinha a respeito dele e dos filósofos em geral. No entanto, é uma
imagem bastante distorcida. Na realidade, Sócrates e os sofistas inauguram um
novo período na história da Filosofia em que a reflexão filosófica se desloca
da cosmologia e da física (princípio que dá origem a todas as coisas) para as
questões relativas à vida concreta na cidade (pólis), isto é, à política, à
ética, ao conhecimento. Os assuntos que ele gostava de abordar eram a justiça,
a beleza, a coragem, o amor, a educação, entre outros. Vem daí, aliás, a
denominação de pré-socráticos atribuída aos filósofos anteriores a ele. Não
tanto por razões de cronologia, mas principalmente pela diferença quanto aos
temas da reflexão filosófica.
Além disso,
no que se refere aos sofistas, Sócrates tinha, certamente, muito mais
diferenças e mesmo divergências com eles do que semelhanças. Enquanto os sofistas
se apresentavam como sábios, isto é, pessoas entendidas em diversos assuntos,
especialmente na técnica da retórica, Sócrates dizia: “Sei que nada sei”;
enquanto os sofistas cobravam pelos ensinamentos que ministravam, Sócrates
condenava essa prática e filosofava com as pessoas gratuitamente na praça
(ágora) de Atenas; enquanto os sofistas eram céticos em relação à possibilidade
de se conhecer a verdade universal, Sócrates a perseguia incansavelmente; enquanto
os sofistas contentavam-se com a opinião (doxa), Sócrates exigia o saber
verdadeiro (episteme).
A respeito
dos sofistas, diz Sócrates ironicamente por ocasião de seu julgamento: “Cada um
desses homens [...] é capaz de dirigir-se a qualquer cidade e persuadir os
jovens, os quais podem se associar, segundo queiram, com qualquer de seus
concidadãos sem pagar, a deixar a companhia dessa pessoa para se juntarem a
ele, remunerá-lo e, além disso, mostrar-lhe gratidão”4.
Vemos, assim,
que a imagem de Sócrates traçada por Aristófanes, procurando retratá-lo como
alguém que anda nas nuvens, preocupado com assuntos alheios ao cotidiano das
pessoas e identificado com os sofistas, não corresponde à verdade sobre ele. Ao
contrário, baseia-se em um preconceito, a exemplo do que ocorrera com a anedota
sobre Tales. É interessante observar que em seu julgamento Sócrates faz menção
à comédia de Aristófanes (As nuvens) como um dos fatores que provocaram as
acusações contra ele.5
1 ARISTÓFANES. As nuvens; Só para mulheres; Um deus
chamado dinheiro. Tradução Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000. p. 11-101.
2 PLATÃO. Apologia de Sócrates. Diálogos socráticos
III. Tradução Edson Bini. São Paulo/Bauru: Edipro, 2008. p. 139-140 [19 c].
3 ARISTÓFANES. Op.
cit. p. 21.
4 PLATÃO. Op. cit. p. 140 [19 e–20a].
5 Idem, p. 139 [19c].
RESPONDA
AS SEGUINTES QUESTÕES:
2. Essas
formas de manifestação artística e cultural são importantes para a democracia? Justifique.
3. Você vê
alguma semelhança entre o papel da comédia no tempo de Sócrates e o dos
programas humorísticos atuais? Dê exemplos e comente.
PESQUISA
INDIVIDUAL
Faça uma
pesquisa para responder às seguintes questões:
1. O que foi
a comédia e qual a sua importância para a democracia ateniense? Cite alguns dos
principais comediógrafos e suas obras.
2. Pode-se
afirmar que a imagem de Sócrates construída por Aristófanes é preconceituosa?
Por quê? Em que sentido?
3. Como era a
democracia ateniense e em que ela se diferencia da democracia brasileira atual?
4. Quais são
as principais diferenças entre Sócrates, os filósofos pré-socráticos e os
sofistas?
5. Discuta
brevemente com um colega sobre a seguinte questão: Como é possível alguém ser a
pessoa mais sábia que existe e, ao mesmo tempo, ser também alguém que nada
sabe?
Utilize o texto
a seguir para embasar esta discussão.
Prof. Manoelito
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