Platão também
se vale de uma “mentira”, ou, mais precisamente, de uma fábula, para explicar a
desigualdade de classes da sociedade ateniense. Trata-se, porém, para ele, de
uma “mentira genuína”, visto que é “necessária” e útil à conservação da cidade.
Atenas, no
tempo de Platão (século V a.C.), era uma cidade-Estado com significativas
desigualdades sociais. Afinal, embora se tratasse de uma democracia direta, era
também uma democracia escravista, na qual o direito à cidadania restringia-se a
cerca de 10% da população, isto é, aos nascidos na cidade, do sexo masculino,
adultos e livres. Estavam, portanto, excluídos os escravos, os estrangeiros, os
menores de 18 anos e as mulheres.
Havia três
classes fundamentais na organização da sociedade ateniense em termos das
atribuições na polis: a dos magistrados, minoritária, formada pelos
governantes, encarregados de elaborar as leis e fazê-las cumprir; a dos
artífices ou classe econômica, mais numerosa, representada pelos trabalhadores
em geral (artesãos, lavradores, comerciantes etc.) livres ou escravizados,
responsáveis pelo provimento dos bens necessários à sobrevivência dos cidadãos;
e a dos guerreiros, encarregados da defesa da cidade.
Para Platão,
essa desigualdade de classes não é necessariamente um problema, desde que cada
cidadão seja encaminhado para a função que está em conformidade com a sua
natureza. Isso porque, para ele, cada um nasce mais preparado para exercer um
determinado tipo de atividade. A cidade justa é aquela que se organiza pela
justa medida, isto é, aquela em que cada um ocupa o lugar designado pela sua
natureza. Nas palavras de Platão, a cidade é “justa pelo fato de que cada uma
das três ordens (classes) que a constituem cumpre sua função”, ou seja: “É
justo que aquele que, por natureza, é sapateiro fabrique sapatos e nada mais
faça, que o construtor construa e, quanto aos outros, também seja assim.” Se
isso for assegurado, reinará a harmonia e a prosperidade.
Para melhor
explicar e justificar essa posição, Platão se vale de uma fábula, ou melhor, de
uma “mentira, única e genuína”, daquelas que se fazem “necessárias” uma vez que
servem à conservação da cidade. Trata-se do mito dos nascidos da terra, segundo
o qual os gregos, tanto eles quanto suas armas, teriam sido modelados e criados
no interior da terra e esta, como sua mãe, os teria dado à luz. Por isso, eles
devem cuidar do lugar onde vivem como um filho cuida de sua mãe, defendê-la dos
inimigos e tratarem-se mutuamente como irmãos. E a narrativa prossegue:
“Todos vós
que estais na cidade sois irmãos, [...] mas ao plasmar-vos, o deus, no momento
da geração, em todos os que eram capazes de comandar misturou ouro, e por isso
são valiosos, e em todos os que eram auxiliares daqueles misturou prata, mas
ferro e bronze nos agricultores e outros artesãos. Já que todos vós sois da
mesma estirpe, no mais das vezes geraríeis filhos muito semelhantes a vós
mesmos, mas, às vezes, do ouro seria gerado um filho de prata e, da prata, um
de ouro, e assim com todas as combinações de um metal com outro. Aos chefes,
como exigência primeira e maior, ordenou o deus que de nada mais fossem tão
bons guardiões quanto de sua prole, nem nada guardassem com tanto rigor,
procurando saber que mistura havia na alma deles e que, se um filho tivesse
dentro de si um pouco de bronze ou de ferro, de forma alguma se compadecesse
dele, mas que o relegasse, atribuindo-lhe o valor adequado à natureza, ao grupo
dos artífices e agricultores. Mas, em compensação, se um deles tivesse em si um
pouco de ouro ou prata, reconhecendo-lhe o valor, fizesse que uns ascendessem à
função de guardião e outros à de auxiliares, porque havia um oráculo que previa
que a cidade pereceria quando um guardião de ferro ou bronze estivesse em função.”
Embora se
trate de uma “mentira”, como reconhece Platão, esta fábula seria útil para que
os magistrados “cuidassem mais da cidade e do relacionamento entre uns e
outros,” mostrando-lhes que possuem alma de ouro e que, portanto, não precisam
almejar possuir ouro em metal (riqueza material), pois a maior riqueza está
dentro deles e esta não perece e não lhes pode ser tomada. Assim a cidade seria
governada por pessoas que não teriam motivo para praticar a corrupção,
favorecendo a justiça. 1 PLATÃO. A República. São Paulo, Martins Fontes, 2006.
Leia
atentamente o texto apresentado e responda:
1.
Como se caracterizava a democracia ateniense.
2.
Quais eram as três classes fundamentais de Atenas e que
função cabia a cada uma?
3.
Reconte em poucas palavras o mito dos nascidos da
terra.
4.
Em que sentido esse mito é uma mentira “necessária”?
Que papel ela cumpre na sociedade ateniense segundo Platão?
Platão e a teoria da alma
A noção que
Platão tem de justiça é reforçada pela sua teoria da alma. Para ele, assim como
na cidade há três classes distintas, também a alma humana possui três partes,
cada uma encarregada de uma função específica:
1. Parte concupiscente ou apetitiva:
concupiscência é sinônimo de “cobiça de bens materiais”, desejo de “prazeres
sensuais”. Situada no baixo-ventre (entre o diafragma e o umbigo), é a parte da
alma responsável pela busca da bebida, da comida, do sexo, dos prazeres, enfim,
de tudo quanto é necessário à conservação do corpo e à reprodução da espécie. É
irracional e mortal.
2. Parte colérica ou irascível:
irascível é quem se irrita ou se enraivece com facilidade. Localizada no peito,
acima do diafragma, sua função é defender o corpo contra tudo o que possa
ameaçar sua segurança. Também é irracional e mortal.
3. Parte racional: é a função superior
da alma, o traço divino que há em nós. Situada na cabeça, é responsável pelo
conhecimento. Apenas essa parte é imortal.
O homem
virtuoso é aquele em que cada parte da alma realiza na medida justa (sem falta
nem excesso) a função que lhe cabe, sob a regência da parte racional. Cabe, portanto,
à parte racional dominar as outras duas. O domínio da razão sobre a
concupiscência resulta na virtude da temperança (moderação); o domínio da razão
sobre a cólera produz a virtude da coragem ou da prudência. A virtude própria
da parte racional é o conhecimento. Por outro lado, o homem vicioso é aquele em
que as partes da alma não conseguem realizar suas funções próprias, ou as
realizam desmensuradamente, o que ocorre quando a parte racional perde o
comando sobre as outras duas. Nesse caso, instaura-se a desordem, o conflito, a
violência contra si e os demais.
Ora, o que
vale para o homem individualmente vale também, de certo modo, para a cidade e
as três classes sociais nela existentes. Na classe econômica, predomina a parte
concupiscente da alma. Daí ela estar sempre voltada para a obtenção de riquezas
e prazeres. Assim, se essa classe assumir o governo, a cidade será mergulhada
em sérios problemas econômicos, aprofundando as desigualdades. Na classe dos
guerreiros, predomina a parte colérica, razão pela qual apreciam os combates e
a fama. Se governarem, a cidade viverá em constante estado de guerra, tanto
interna quanto externamente, gerando insegurança e instabilidade. Finalmente,
na classe dos magistrados, predomina a parte racional da alma, o que lhe
favorece conhecer a ciência da política e, desse modo, governar as outras duas
classes e em conformidade com a justiça.
Em suma,
assim como o homem justo é aquele em que a razão governa a cólera e a concupiscência,
assim também na cidade, para haver justiça, é preciso que os magistrados governem
as demais classes, dedicando-se estas às funções que lhes são próprias. Caberá
à educação preparar os indivíduos de cada classe para o exercício da função e
da virtude a ela correspondentes. Assim, a classe econômica deve ser educada
para a frugalidade e a temperança; a classe militar, para a coragem, e a classe
dos magistrados, para a prudência.
O resultado
dessa combinação será uma quarta e principal virtude: a justiça. Assim, a
cidade justa é aquela em que cada classe cumpre harmoniosamente o papel que lhe
cabe: o magistrado governa, o soldado defende e a classe econômica provê a
subsistência dos cidadãos, tudo na mais perfeita harmonia. Desse modo, cada um
exercendo a função correspondente às inclinações de sua alma, às
características de sua natureza, todos concorrerão para a realização da
justiça.
Eis,
portanto, como Platão legitima e justifica a desigualdade entre as classes,
apresentado-a como expressão da justiça e instrumento para a realização do bem
comum.
1. O que são,
para Platão, o homem virtuoso e o homem vicioso?
2. Como
Platão articula sua teoria da alma humana com as três classes sociais da
sociedade ateniense de seu tempo?
3. Qual é o
conceito de justiça defendido por Platão? Você concorda com ele? Justifique.
4. Que papel
Platão atribui à educação na promoção da justiça? Você concorda? Justifique.
Se Platão não
vê problemas na existência de classes sociais, resta saber o que ele pensa a
respeito da escravidão e do papel das mulheres na sociedade. No que se refere à
escravidão, era costume entre os povos antigos que, nas guerras, os vencedores
escravizassem os vencidos. Esse suposto direito fundamentava-se na ideia de que,
a princípio, o vencedor poderia matar o vencido, o qual, porém, poderia
preservar a vida ao preço de sua liberdade.
Platão, ao
que parece, não se opõe inteiramente a esse costume. No entanto, recomenda que
se aplique apenas aos inimigos estrangeiros e não aos gregos. Vale lembrar que
as cidades gregas frequentemente entravam em conflito entre si. Com relação ao
papel das mulheres, considerando que na sociedade grega antiga elas nem sequer
eram cidadãs, Platão surpreende defendendo a ideia de que, no caso das mulheres
dos magistrados ou guardiões, as que se mostrassem capazes poderiam exercer as mesmas
funções e receber a mesma educação.
Mas como isso
seria possível se homem e mulher têm naturezas diferentes e se o próprio Platão
afirmara que a cidade justa é aquela em que cada um exerce a atividade para a
qual está apto por natureza? Nesse sentido, homem e mulher não poderiam exercer
uma mesma atividade.
A posição de Platão acerca da escravidão e
do papel da mulher
Na realidade,
diz Platão, as diferenças entre homens e mulheres são apenas acidentais n(como
o fato de a mulher dar à luz e o homem procriar) e não por natureza. Portanto,
ambos podem ocupar-se das mesmas funções. Nas palavras do autor: “Ah! Meu
amigo, entre as ocupações da administração da cidade, nenhuma cabe à mulher
porque ela é mulher, nem ao homem porque ele é homem, mas as qualidades
naturais estão igualmente disseminadas nos dois sexos e, por natureza, a mulher
participa de todas ocupações e de todas também o homem, mas em todas elas a
mulher é mais fraca que o homem.”2
Se homem e
mulher podem desempenhar funções idênticas, é natural que recebam então a mesma
educação: “Então, para que uma mulher se torne guardiã, não haverá entre nós
uma educação para os homens e outra para as mulheres, principalmente porque ela
irá cuidar de uma mesma natureza.”3
Mais adiante,
no livro VII, ao descrever como deve ser a educação do governante da cidade,
Platão reitera pela boca de Sócrates: “Não penses que o que eu disse cabe mais
aos homens que às mulheres, a quantas delas por natureza forem competentes.”4
A ideia de
que a mulher é mais fraca do que o homem, expressa ao final da citação
apresentada, absolutamente dispensável e inaceitável aos nossos olhos
contemporâneos, revela os limites do pensamento de Platão, particularmente com
relação ao papel da mulher. Afinal, como qualquer pessoa, ele também está, em
grande medida, condicionado pelos valores dominantes de sua época. Tal
condicionamento, porém, não anula o caráter relativamente avançado e inovador
de suas posições a esse respeito, comparativamente a esses mesmos valores.
Você sabia
que existe uma lei no Brasil (Lei no 9 504/97, art. 10, parágrafo 3o) que
obriga os partidos políticos a reservarem no mínimo 30% das vagas de suas
candidaturas para mulheres? O que você pensa a respeito disso?
Como dizia
Platão, “entre as ocupações da administração da cidade, nenhuma cabe à mulher
porque ela é mulher, nem ao homem porque ele é homem, mas as qualidades
naturais estão igualmente disseminadas nos dois sexos e, por natureza, a mulher
participa de todas as ocupações e de todas também o homem” (PLATÃO, 2006. p.
184 [455e]).
1 - Por que
na sociedade brasileira a participação das mulheres na política ainda é tão
pequena? Escreva suas conclusões e comentários.