As três etapas propostas estarão divididas
em dois eixos temáticos fundamentados por dois importantes Filósofos franceses
contemporâneos: Paul Ricoeur e Michel Foucault. Com isso, pretendemos trabalhar
a constituição da subjetividade ou da individualidade por meio das relações
socioculturais.
Como
nós pensamos o indivíduo? Em geral, podemos dizer que o
indivíduo tem duas dimensões: ser membro de uma sociedade qualquer (como uma
formiga em um formigueiro) e, em sentido moral, um ser independente e autônomo.
Portanto, quando falamos de indivíduo, pensamos em um ser da espécie humana com
autonomia e independência. A primeira preocupação de Ricoeur é como, de modo
geral, nos individualizamos. Como dizemos, por exemplo, que determinado ser é
uma amostra indivisível de uma espécie? Como podemos afirmar que uma abelha,
por exemplo, é um indivíduo da espécie das abelhas? O que faz que ela
represente sua espécie? Igualmente, como um homem pode dizer que faz parte da
espécie humana, mesmo considerando as diferenças?
O ponto de partida de Ricoeur é a
linguagem, pois é por meio dela que nós pensamos e dizemos o mundo. Esse ato de
dizer o mundo só é possível pela interpretação, sendo a linguagem a
manifestação da interpretação do mundo. E ela é capaz de dizer o indivíduo por
meio de três formas: por descrições definidas, por nomes próprios e por
indicadores. As descrições definidas podem ser: a menina que sempre compra
chocolate. Nas descrições, há um entrecruzamento de categorias para designar um
indivíduo. No caso do exemplo a menina que sempre compra chocolate, há a
categoria menina e a dos seres que sempre compram chocolate. De todas as
meninas do mundo, nós nos referimos àquela que sempre compra chocolate. De
todos os seres que compram chocolate, nós nos referimos à menina. Portanto, ao
descrevermos, nós cruzamos categorias para designar um indivíduo.
Os nomes próprios referem-se a uma
designação específica e permanente. A função lógica é simples: designar a
singularidade do indivíduo. Por exemplo, Marcelo. Obviamente, se pronuncio a
palavra Marcelo, eu me refiro ao Marcelo. No entanto, resta-me especificar suas
propriedades, como: Marcelo, o aluno educado ou Marcelo, o aluno alto da 3a
série. Mas há outra maneira de dizer o indivíduo que, para Ricoeur, é a mais
importante, a saber, por meio de indicadores, que podem ser pronomes pessoais,
eu e tu; pronomes demonstrativos, isto e aquilo; advérbios de lugar, aqui,
acolá e além; advérbios de tempo, agora, ontem, amanhã; advérbios de modo,
assim e diversamente; além de todos os outros dessas categorias gramaticais.
Os indicadores se diferenciam dos nomes
próprios porque podem designar seres diferentes. Por exemplo, quando dizemos
Aristóteles, nos referimos a um importante filósofo da Grécia clássica; quando
dizemos você, podemos dizer essa palavra para referir a vários interlocutores. Esses
indicadores envolvem completamente o locutor, o ser que pronuncia a linguagem e
que narra, interpretando o mundo. Observe que, quando o locutor diz agora, ele
se posiciona no tempo. O mesmo ocorre quando ele diz aqui, quando se posiciona
no espaço. Quando ele diz você, ele se posiciona em relação a outro.
Eu
digo - Em um diálogo, temos, necessariamente,
dois interlocutores. No instante em que apenas um fala, nós temos o locutor. A
locução exige alguém que ouça; portanto, falar é dirigir -se a. Uma
interlocução exige o envolvimento de, pelo menos, dois seres – quem fala e quem
ouve, ou ouvirá. No entanto, quando falamos, não apenas dizemos as coisas como
são, mas criamos outras. Por exemplo, uma promessa. A promessa só existe a
partir do ato da fala, ela é uma criação ética da própria linguagem, em meio a
uma interlocução. Em geral, o “eu” aparece completamente imbricado em nossa
fala, encaixado em tudo o que falamos. Por exemplo, quando alguém diz o gato
está limpo, seria fácil acrescer uma fala que remeta ao locutor: eu declaro que
o gato está limpo. Mesmo sem perceber, cada vez que falamos, podemos nos
remeter a nós mesmos, na condição de locutores.
Este “eu” que somos está ancorado na
história e no tempo vivido – o agora –, porque esse “eu” tem um nome próprio e
uma data de nascimento, fixada no tempo e no espaço. Ao dizer o próprio nome,
nós fazemos uma correlação do agora com aquilo que já vivemos sob esse nome,
quer seja a nossa família, quer sejam nossos documentos. É a correlação do
presente vivo (dizer o nome) com algum outro ponto no tempo.
Do
mesmo modo, podemos dizer isso do espaço, o lugar vivo agora, como a sala de
aula, que pode ser correlato a outro espaço: pelo fato de dizermos eu estou na
sala de aula, dizemos que não estamos em outro lugar, no qual já estivemos ou
queríamos estar, por exemplo.
Ipseidade
– do que sou para quem sou - A Ipseidade é a
fala que usamos para dizer o que pertence apenas ao indivíduo, à sua
singularidade. Aquilo que, entre vários de uma espécie, diferencia um só. Somos
seres que nos caracterizamos por instituir o mundo pela linguagem. Ademais, ela
nos proporciona o que somos: seres que fazem uso dessa mesma linguagem para se
expressar, interpretar e ouvir. Isso significa dizer que a linguagem nos
proporciona o que somos e o que o mundo é. Mas será que a linguagem é capaz de
não apenas dizer o que somos, mas quem somos? Essa problemática do quem é
fundamental, à medida que a resposta a essa questão traz a possibilidade da
instituição do “eu” como si mesmo – idêntico somente a si, diferente de todos
da sua espécie.
Para sabermos quem é este “eu”, o passo
seguinte é narrá-lo. Ao narrar, somos obrigados a dizer a ação desse sujeito.
Narrativa supondo, minimamente, o “eu”, algum verbo, em algum lugar, em algum
tempo, sobre algo, como em “Eu nasci em Sorocaba”; “Eu sei ler”; “Eu sinto
saudade de Maria” etc. Até o ponto de criarmos “intrigas” ou entrelaçamento de
vivências, ao máximo que nossa linguagem pode suportar. Somos mais densos
conforme se aprofunda nossa linguagem e conforme nossas narrativas de nós
mesmos melhoram. Além disso, torna-se fundamental pensarmos que nossa narrativa
não diz apenas de um ser imutável; ela é uma história de um ser em contínua
mudança, pois esse ser se dá pela ação narrada, e cada ação é diferente, até
mesmo a mais recente delas. Portanto, nós somos a nossa história contada e
somos leitores de nós mesmos.
A
linguagem do “eu” e o outro - De fato, o uso
da linguagem produz a constituição do “eu”. Nossas palavras e sentidos estão
recheados das mais diversas ideologias. Nessa fusão quase sempre imperceptível,
essas ideologias também nos instituem e nos configuram, atuando em nossa própria
narrativa. Se aprendermos desde criança palavras de discriminação, de
categorização de pessoas, algo comum em universos sociais racistas, nossa
leitura de nós mesmos pode estar profundamente constituída por esses
preconceitos. Com a exclusão do outro, por exemplo, instituímo-nos de maneira
vil como racistas.
No entanto, pode haver uma promessa que
fazemos para sermos melhores dentro da sociedade, com ações cuja narrativa se
expressa por um ato generosamente bonito. Por isso, podemos partir de uma
situação de narrativa de nós mesmos para outra, na tentativa ética de
superarmos as injustiças e a exclusão do outro. Podemos, sempre, perguntar a nós
mesmos, o que dizer da sua história? Ela é honestamente bonita? Não se pode
pressupor que a ética dependa exclusivamente do indivíduo por si mesmo, uma vez
que esse indivíduo é configurado pela sua ação no mundo, principalmente em
relação ao outro, por meio de cooperação com base na linguagem.
Para Ricoeur, a ideologia individualista
propõe pensarmos que, independentemente dos outros, somos agentes éticos
capazes de moldar a sociedade. Ao contrário, quando fazemos a promessa de
sermos melhores, instituímos quem faz e quem ouve a promessa. Configuraram-se o
eu e o outro de mim, que agora é o tu-você. Depois, este que ouviu tem o
direito de cobrar a promessa feita. Ao mantermos nossa promessa, estabelecemos
um laço de confiança e de cooperação. Nossa narrativa nos configura, mas não o
faz sem configurar o outro. O dever ético não se dá apenas sobre o indivíduo,
mas sobre a relação com o outro.
A
sujeição - A seguir vamos analisar um pequeno texto
elaborado com base na obra Vigiar e punir de Michel Foucault.
“Podemos
afirmar que o corpo, as formas de cuidar e se mostrar sempre foram alvo de
observação e preocupação. A partir da Era Moderna, a atenção com o corpo, de
certa forma, foi ampliada pelo desenvolvimento da Medicina e das Ciências
Sociais, que promoveram um novo olhar sobre o corpo e sobre suas técnicas de
disciplinarização. Foram produzidas teorias sobre a anatomia e a “metafísica”
do corpo. Investigavam as funções do corpo, cada Órgão, cada detalhe, e se
procurava entendê-lo em um conjunto moral – todas as questões orbitavam as
funções. Por exemplo: 0lho, o que é? Para que serve? Como funciona? Qual é a
sua função biológica e moral?
Por
outro lado, a investigação anatômica apresentava a perspectiva de promoção de
valores de ação e produção com o objetivo de moldar os corpos para adaptá-los a
um ideal de sociedade. Por isso, essas técnicas informavam como fazer uma
pessoa ser capaz de produzir algo, por exemplo, como um trabalhador pode
conseguir mais de seu trabalho e em menos tempo, como acalmar uma pessoa
considerada louca, como impedir que as crianças utilizassem indevidamente os
Órgãos genitais, como impedir que os soldados ficassem “molengas”, e muitos
outros. Esses conhecimentos sobre o corpo faziam que cada vez mais as pessoas
procurassem viver de forma a corresponder a eles. Assim, logo se descobriu que
o que se faz com o corpo, se faz com a subjetividade das pessoas. Se alguém é
treinado para ser soldado, logo ele pensará com os ideais de um soldado, terá
emoções de soldado, ou seja, estará moldado por dentro e por fora para ser um
soldado. 0 que se diria então dos esportistas, dos religiosos, dos alunos, dos
trabalhadores? A modernidade baseada no corpo aprendeu a moldar as pessoas por
completo, não apenas por teoria, mas, sobretudo, por meio de técnicas. ”
Esse excerto traz uma das ideias centrais
de Foucault, a qual diz respeito à invenção do sujeito moderno, do indivíduo
moderno. Para esse filósofo, a maneira como nos vemos não procede de nossa
natureza, nem de uma essência pessoal, ela vem de fora, de práticas que criam
sujeitos pela sujeição dos corpos. Nós nos constituímos não apenas por
palavras, mas por ações fundidas a palavras, que, de modo geral, vêm ditadas pela
sociedade, ou melhor, pelas instituições. Para Foucault, nós não somos fruto de
teorias, somos fruto de práticas, ainda que algumas teorias nos influenciem.
Por exemplo, seria possível existir um dançarino que nunca dançou ou um pintor
que nada pinta? A resposta seria que são nossas práticas que nos constituem, e
não a natureza. Mas de quais práticas estaria falando o filósofo? De onde elas
vieram? Foucault fala das práticas disciplinares que vieram das instituições
modernas, principalmente a partir do século XVIII, como as prisões, os
hospitais, os quartéis, as fábricas e as escolas.
A
distribuição - A primeira atividade que as
autoridades modernas deram ao corpo para discipliná-lo foi a distribuição. Para
controlar um indivíduo, é importante colocá-lo em um lugar escolhido por nós.
Mas como seria possível distribuir pessoas de uma cidade ou de uma sociedade
inteira?
ü Primeiro,
construindo cercas ou muros, como nos quartéis e nas escolas. Dessa maneira, os
soldados e os alunos ficam separados das pessoas, não causando problemas.
ü A
segunda prática de distribuição consiste em separar os grupos e fazer que cada
um encontre um lugar no espaço. Por exemplo, cada trabalhador no seu setor,
cada doente no seu quarto, cada aluno em sua carteira etc.
ü A
terceira prática de distribuição configura-se em dar aos indivíduos um lugar
funcional: não basta separar, é preciso que estejam em um lugar em que possam
ser vigiados, evitando comunicações indevidas ou reunindo forças contra quem os
controla.
ü Enfim,
toda separação tem o ideal da fila, o que quer dizer que as pessoas são
separadas segundo uma hierarquia. Por exemplo, as séries e as classes na escola
são separadas por idade.
O
controle do tempo - Outra forma de transformar os
indivíduos por meio dos corpos consiste em controlar o seu tempo.
ü Primeiro:
pelos horários, por exemplo, hora para chegar, descansar, sair, trabalhar, dormir,
acordar, tomar o remédio.
ü Segundo:
marcando o tempo de sua ação, por exemplo, a marcha dos soldados, a velocidade
para apertar um parafuso na fábrica, para atender um telefone ou realizar outra
atividade.
ü Terceiro:
disciplinando o corpo inteiro, para sempre fazer tudo bem-feito.
ü Quarto:
adaptando o corpo aos objetos que se manipulam, por exemplo, caso fosse preciso
ficar muito tempo em pé, seria necessário disciplinar as pernas e controlar os
gestos, para que elas conseguissem executar as tarefas.
ü Enfim,
utilizar bem o tempo, até a exaustão.
O
controle das gêneses - Para conseguir criar o indivíduo
desejado, também foi preciso controlar a forma de sua subordinação à
disciplina. Para isso:
Separaram-se os aprendizes dos veteranos. Segundo
as necessidades de exercícios, foram separados aqueles que precisavam melhorar
o desempenho nesta ou naquela ação ou atividade, exercitando-os até que alcançassem
o máximo rendimento. Como em uma academia de musculação, aquele que precisa
trabalhar os braços, por exemplo, foi direcionado a isso, assim como no
Exército, em que aquele que precisa melhorar a pontaria é separado e exercitado
para isso. Criaram-se testes para medir a habilidade de cada indivíduo e
encerrar o processo. Para cada um é dada uma série de atividades, conforme sua
idade, conhecimento e habilidade, até alcançar o objetivo final.
Recursos
de um bom adestramento - Para conseguir um bom adestramento,
foi preciso lançar mão de alguns recursos e procedimentos:
ü Vigilância
– é preciso que alguém fique observando a atividade, o corpo, o uso do tempo.
Dessa maneira, será possível corrigir ou punir.
ü A
sanção normalizadora – em cada instituição, há maneiras de punir as pessoas que
não cumprem seus deveres, o que ocorre na família, na escola, na fábrica ou no
Exército. Essa punição pode vir dos próprios integrantes da instituição (os
familiares, por exemplo) ou das autoridades.
ü O
exame – ao saber que vão ser submetidos a um teste, prova ou observação de uma
autoridade, os indivíduos se autovigiam e se autopunem, colocando os objetivos
das instituições dentro de si. Como? Vejamos o exemplo das provas na escola.
Para se sair bem na prova de Filosofia, o aluno terá de estudar. Estudar é uma
atividade nem sempre agradável. Para realizar essa atividade nem sempre
agradável, o aluno terá de se vigiar, dizendo a si mesmo: Será que estou
estudando o suficiente? Caso não esteja estudando, ele pode submeter-se a uma
autopunição, por exemplo, já que não estudou durante a tarde, não assistirá ao
filme da noite para poder fazê-lo.
ü Os
exames escolares produzem uma documentação que, ao final, compre um histórico
de cada pessoa. Por exemplo, tanto na escola como no hospital ou na fábrica,
cada indivíduo tem uma ficha em que são registrados seus dados e sua
documentação é guardada. Dessa maneira, é possível saber quantas vezes o aluno
foi reprovado, se é ou não disciplinado, em quais matérias apresenta maior ou
menor dificuldade, se foi punido e as razões de sua punição etc. Do mesmo modo,
na fábrica, quantas vezes o operário chegou atrasado, quantas faltas já teve,
quais suas condições de saúde, quantos e quais foram os acidentes sofridos etc.
Enfim, cada um se torna um caso que requer determinado tratamento.
Para Foucault, os indivíduos não nascem
prontos, não têm essência ou natureza, eles são criados pelas atividades que
desenvolvem com o seu corpo. Para esse filósofo, somos corpo e nada mais. O que
fazemos com o corpo é o que nos define, e não apenas o que é dito sobre nós
mesmos.
1. Como nós pensamos o indivíduo?
2. Como a linguagem é capaz de dizer o
indivíduo? Explique.
3. Por que os indicadores se diferenciam
dos nomes próprios? Dê exemplo.
4. O que fazemos ao dizer o próprio nome?
Explique.
5. O que é Ipseidade, segundo Ricoeur?
6. Segundo Ricoeur, o que propõe a
ideologia individualista?
7. Fale sobre a atenção com o corpo a
partir da Era Moderna.
8. O que nós somos, segundo Foucault?
9. De quais práticas disciplinares
Foucault está falando e de onde elas vieram?
10. Explique resumidamente as práticas
disciplinares: A distribuição; O controle do tempo; O controle das gêneses.
11. Quais são os recursos e procedimentos
para um bom adestramento?
12. Para Foucault, os indivíduos não
nascem prontos, não têm essência ou natureza, por quê?
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