quarta-feira, 11 de maio de 2016

T0RNAR-SE INDIVÍDUO


As três etapas propostas estarão divididas em dois eixos temáticos fundamentados por dois importantes Filósofos franceses contemporâneos: Paul Ricoeur e Michel Foucault. Com isso, pretendemos trabalhar a constituição da subjetividade ou da individualidade por meio das relações socioculturais.
Como nós pensamos o indivíduo? Em geral, podemos dizer que o indivíduo tem duas dimensões: ser membro de uma sociedade qualquer (como uma formiga em um formigueiro) e, em sentido moral, um ser independente e autônomo. Portanto, quando falamos de indivíduo, pensamos em um ser da espécie humana com autonomia e independência. A primeira preocupação de Ricoeur é como, de modo geral, nos individualizamos. Como dizemos, por exemplo, que determinado ser é uma amostra indivisível de uma espécie? Como podemos afirmar que uma abelha, por exemplo, é um indivíduo da espécie das abelhas? O que faz que ela represente sua espécie? Igualmente, como um homem pode dizer que faz parte da espécie humana, mesmo considerando as diferenças?
O ponto de partida de Ricoeur é a linguagem, pois é por meio dela que nós pensamos e dizemos o mundo. Esse ato de dizer o mundo só é possível pela interpretação, sendo a linguagem a manifestação da interpretação do mundo. E ela é capaz de dizer o indivíduo por meio de três formas: por descrições definidas, por nomes próprios e por indicadores. As descrições definidas podem ser: a menina que sempre compra chocolate. Nas descrições, há um entrecruzamento de categorias para designar um indivíduo. No caso do exemplo a menina que sempre compra chocolate, há a categoria menina e a dos seres que sempre compram chocolate. De todas as meninas do mundo, nós nos referimos àquela que sempre compra chocolate. De todos os seres que compram chocolate, nós nos referimos à menina. Portanto, ao descrevermos, nós cruzamos categorias para designar um indivíduo.
Os nomes próprios referem-se a uma designação específica e permanente. A função lógica é simples: designar a singularidade do indivíduo. Por exemplo, Marcelo. Obviamente, se pronuncio a palavra Marcelo, eu me refiro ao Marcelo. No entanto, resta-me especificar suas propriedades, como: Marcelo, o aluno educado ou Marcelo, o aluno alto da 3a série. Mas há outra maneira de dizer o indivíduo que, para Ricoeur, é a mais importante, a saber, por meio de indicadores, que podem ser pronomes pessoais, eu e tu; pronomes demonstrativos, isto e aquilo; advérbios de lugar, aqui, acolá e além; advérbios de tempo, agora, ontem, amanhã; advérbios de modo, assim e diversamente; além de todos os outros dessas categorias gramaticais.
Os indicadores se diferenciam dos nomes próprios porque podem designar seres diferentes. Por exemplo, quando dizemos Aristóteles, nos referimos a um importante filósofo da Grécia clássica; quando dizemos você, podemos dizer essa palavra para referir a vários interlocutores. Esses indicadores envolvem completamente o locutor, o ser que pronuncia a linguagem e que narra, interpretando o mundo. Observe que, quando o locutor diz agora, ele se posiciona no tempo. O mesmo ocorre quando ele diz aqui, quando se posiciona no espaço. Quando ele diz você, ele se posiciona em relação a outro.
Eu digo - Em um diálogo, temos, necessariamente, dois interlocutores. No instante em que apenas um fala, nós temos o locutor. A locução exige alguém que ouça; portanto, falar é dirigir -se a. Uma interlocução exige o envolvimento de, pelo menos, dois seres – quem fala e quem ouve, ou ouvirá. No entanto, quando falamos, não apenas dizemos as coisas como são, mas criamos outras. Por exemplo, uma promessa. A promessa só existe a partir do ato da fala, ela é uma criação ética da própria linguagem, em meio a uma interlocução. Em geral, o “eu” aparece completamente imbricado em nossa fala, encaixado em tudo o que falamos. Por exemplo, quando alguém diz o gato está limpo, seria fácil acrescer uma fala que remeta ao locutor: eu declaro que o gato está limpo. Mesmo sem perceber, cada vez que falamos, podemos nos remeter a nós mesmos, na condição de locutores.
Este “eu” que somos está ancorado na história e no tempo vivido – o agora –, porque esse “eu” tem um nome próprio e uma data de nascimento, fixada no tempo e no espaço. Ao dizer o próprio nome, nós fazemos uma correlação do agora com aquilo que já vivemos sob esse nome, quer seja a nossa família, quer sejam nossos documentos. É a correlação do presente vivo (dizer o nome) com algum outro ponto no tempo.
 Do mesmo modo, podemos dizer isso do espaço, o lugar vivo agora, como a sala de aula, que pode ser correlato a outro espaço: pelo fato de dizermos eu estou na sala de aula, dizemos que não estamos em outro lugar, no qual já estivemos ou queríamos estar, por exemplo.
Ipseidade – do que sou para quem sou - A Ipseidade é a fala que usamos para dizer o que pertence apenas ao indivíduo, à sua singularidade. Aquilo que, entre vários de uma espécie, diferencia um só. Somos seres que nos caracterizamos por instituir o mundo pela linguagem. Ademais, ela nos proporciona o que somos: seres que fazem uso dessa mesma linguagem para se expressar, interpretar e ouvir. Isso significa dizer que a linguagem nos proporciona o que somos e o que o mundo é. Mas será que a linguagem é capaz de não apenas dizer o que somos, mas quem somos? Essa problemática do quem é fundamental, à medida que a resposta a essa questão traz a possibilidade da instituição do “eu” como si mesmo – idêntico somente a si, diferente de todos da sua espécie.
Para sabermos quem é este “eu”, o passo seguinte é narrá-lo. Ao narrar, somos obrigados a dizer a ação desse sujeito. Narrativa supondo, minimamente, o “eu”, algum verbo, em algum lugar, em algum tempo, sobre algo, como em “Eu nasci em Sorocaba”; “Eu sei ler”; “Eu sinto saudade de Maria” etc. Até o ponto de criarmos “intrigas” ou entrelaçamento de vivências, ao máximo que nossa linguagem pode suportar. Somos mais densos conforme se aprofunda nossa linguagem e conforme nossas narrativas de nós mesmos melhoram. Além disso, torna-se fundamental pensarmos que nossa narrativa não diz apenas de um ser imutável; ela é uma história de um ser em contínua mudança, pois esse ser se dá pela ação narrada, e cada ação é diferente, até mesmo a mais recente delas. Portanto, nós somos a nossa história contada e somos leitores de nós mesmos.
A linguagem do “eu” e o outro - De fato, o uso da linguagem produz a constituição do “eu”. Nossas palavras e sentidos estão recheados das mais diversas ideologias. Nessa fusão quase sempre imperceptível, essas ideologias também nos instituem e nos configuram, atuando em nossa própria narrativa. Se aprendermos desde criança palavras de discriminação, de categorização de pessoas, algo comum em universos sociais racistas, nossa leitura de nós mesmos pode estar profundamente constituída por esses preconceitos. Com a exclusão do outro, por exemplo, instituímo-nos de maneira vil como racistas.
No entanto, pode haver uma promessa que fazemos para sermos melhores dentro da sociedade, com ações cuja narrativa se expressa por um ato generosamente bonito. Por isso, podemos partir de uma situação de narrativa de nós mesmos para outra, na tentativa ética de superarmos as injustiças e a exclusão do outro. Podemos, sempre, perguntar a nós mesmos, o que dizer da sua história? Ela é honestamente bonita? Não se pode pressupor que a ética dependa exclusivamente do indivíduo por si mesmo, uma vez que esse indivíduo é configurado pela sua ação no mundo, principalmente em relação ao outro, por meio de cooperação com base na linguagem.
Para Ricoeur, a ideologia individualista propõe pensarmos que, independentemente dos outros, somos agentes éticos capazes de moldar a sociedade. Ao contrário, quando fazemos a promessa de sermos melhores, instituímos quem faz e quem ouve a promessa. Configuraram-se o eu e o outro de mim, que agora é o tu-você. Depois, este que ouviu tem o direito de cobrar a promessa feita. Ao mantermos nossa promessa, estabelecemos um laço de confiança e de cooperação. Nossa narrativa nos configura, mas não o faz sem configurar o outro. O dever ético não se dá apenas sobre o indivíduo, mas sobre a relação com o outro.
A sujeição - A seguir vamos analisar um pequeno texto elaborado com base na obra Vigiar e punir de Michel Foucault.
“Podemos afirmar que o corpo, as formas de cuidar e se mostrar sempre foram alvo de observação e preocupação. A partir da Era Moderna, a atenção com o corpo, de certa forma, foi ampliada pelo desenvolvimento da Medicina e das Ciências Sociais, que promoveram um novo olhar sobre o corpo e sobre suas técnicas de disciplinarização. Foram produzidas teorias sobre a anatomia e a “metafísica” do corpo. Investigavam as funções do corpo, cada Órgão, cada detalhe, e se procurava entendê-lo em um conjunto moral – todas as questões orbitavam as funções. Por exemplo: 0lho, o que é? Para que serve? Como funciona? Qual é a sua função biológica e moral?
Por outro lado, a investigação anatômica apresentava a perspectiva de promoção de valores de ação e produção com o objetivo de moldar os corpos para adaptá-los a um ideal de sociedade. Por isso, essas técnicas informavam como fazer uma pessoa ser capaz de produzir algo, por exemplo, como um trabalhador pode conseguir mais de seu trabalho e em menos tempo, como acalmar uma pessoa considerada louca, como impedir que as crianças utilizassem indevidamente os Órgãos genitais, como impedir que os soldados ficassem “molengas”, e muitos outros. Esses conhecimentos sobre o corpo faziam que cada vez mais as pessoas procurassem viver de forma a corresponder a eles. Assim, logo se descobriu que o que se faz com o corpo, se faz com a subjetividade das pessoas. Se alguém é treinado para ser soldado, logo ele pensará com os ideais de um soldado, terá emoções de soldado, ou seja, estará moldado por dentro e por fora para ser um soldado. 0 que se diria então dos esportistas, dos religiosos, dos alunos, dos trabalhadores? A modernidade baseada no corpo aprendeu a moldar as pessoas por completo, não apenas por teoria, mas, sobretudo, por meio de técnicas. ”
Esse excerto traz uma das ideias centrais de Foucault, a qual diz respeito à invenção do sujeito moderno, do indivíduo moderno. Para esse filósofo, a maneira como nos vemos não procede de nossa natureza, nem de uma essência pessoal, ela vem de fora, de práticas que criam sujeitos pela sujeição dos corpos. Nós nos constituímos não apenas por palavras, mas por ações fundidas a palavras, que, de modo geral, vêm ditadas pela sociedade, ou melhor, pelas instituições. Para Foucault, nós não somos fruto de teorias, somos fruto de práticas, ainda que algumas teorias nos influenciem. Por exemplo, seria possível existir um dançarino que nunca dançou ou um pintor que nada pinta? A resposta seria que são nossas práticas que nos constituem, e não a natureza. Mas de quais práticas estaria falando o filósofo? De onde elas vieram? Foucault fala das práticas disciplinares que vieram das instituições modernas, principalmente a partir do século XVIII, como as prisões, os hospitais, os quartéis, as fábricas e as escolas.
A distribuição - A primeira atividade que as autoridades modernas deram ao corpo para discipliná-lo foi a distribuição. Para controlar um indivíduo, é importante colocá-lo em um lugar escolhido por nós. Mas como seria possível distribuir pessoas de uma cidade ou de uma sociedade inteira?
ü  Primeiro, construindo cercas ou muros, como nos quartéis e nas escolas. Dessa maneira, os soldados e os alunos ficam separados das pessoas, não causando problemas.
ü  A segunda prática de distribuição consiste em separar os grupos e fazer que cada um encontre um lugar no espaço. Por exemplo, cada trabalhador no seu setor, cada doente no seu quarto, cada aluno em sua carteira etc.
ü  A terceira prática de distribuição configura-se em dar aos indivíduos um lugar funcional: não basta separar, é preciso que estejam em um lugar em que possam ser vigiados, evitando comunicações indevidas ou reunindo forças contra quem os controla.
ü  Enfim, toda separação tem o ideal da fila, o que quer dizer que as pessoas são separadas segundo uma hierarquia. Por exemplo, as séries e as classes na escola são separadas por idade.
O controle do tempo - Outra forma de transformar os indivíduos por meio dos corpos consiste em controlar o seu tempo.
ü  Primeiro: pelos horários, por exemplo, hora para chegar, descansar, sair, trabalhar, dormir, acordar, tomar o remédio.
ü  Segundo: marcando o tempo de sua ação, por exemplo, a marcha dos soldados, a velocidade para apertar um parafuso na fábrica, para atender um telefone ou realizar outra atividade.
ü  Terceiro: disciplinando o corpo inteiro, para sempre fazer tudo bem-feito.
ü  Quarto: adaptando o corpo aos objetos que se manipulam, por exemplo, caso fosse preciso ficar muito tempo em pé, seria necessário disciplinar as pernas e controlar os gestos, para que elas conseguissem executar as tarefas.
ü  Enfim, utilizar bem o tempo, até a exaustão.
O controle das gêneses - Para conseguir criar o indivíduo desejado, também foi preciso controlar a forma de sua subordinação à disciplina. Para isso:
Separaram-se os aprendizes dos veteranos. Segundo as necessidades de exercícios, foram separados aqueles que precisavam melhorar o desempenho nesta ou naquela ação ou atividade, exercitando-os até que alcançassem o máximo rendimento. Como em uma academia de musculação, aquele que precisa trabalhar os braços, por exemplo, foi direcionado a isso, assim como no Exército, em que aquele que precisa melhorar a pontaria é separado e exercitado para isso. Criaram-se testes para medir a habilidade de cada indivíduo e encerrar o processo. Para cada um é dada uma série de atividades, conforme sua idade, conhecimento e habilidade, até alcançar o objetivo final.
Recursos de um bom adestramento - Para conseguir um bom adestramento, foi preciso lançar mão de alguns recursos e procedimentos:
ü  Vigilância – é preciso que alguém fique observando a atividade, o corpo, o uso do tempo. Dessa maneira, será possível corrigir ou punir.
ü  A sanção normalizadora – em cada instituição, há maneiras de punir as pessoas que não cumprem seus deveres, o que ocorre na família, na escola, na fábrica ou no Exército. Essa punição pode vir dos próprios integrantes da instituição (os familiares, por exemplo) ou das autoridades.
ü  O exame – ao saber que vão ser submetidos a um teste, prova ou observação de uma autoridade, os indivíduos se autovigiam e se autopunem, colocando os objetivos das instituições dentro de si. Como? Vejamos o exemplo das provas na escola. Para se sair bem na prova de Filosofia, o aluno terá de estudar. Estudar é uma atividade nem sempre agradável. Para realizar essa atividade nem sempre agradável, o aluno terá de se vigiar, dizendo a si mesmo: Será que estou estudando o suficiente? Caso não esteja estudando, ele pode submeter-se a uma autopunição, por exemplo, já que não estudou durante a tarde, não assistirá ao filme da noite para poder fazê-lo.
ü  Os exames escolares produzem uma documentação que, ao final, compre um histórico de cada pessoa. Por exemplo, tanto na escola como no hospital ou na fábrica, cada indivíduo tem uma ficha em que são registrados seus dados e sua documentação é guardada. Dessa maneira, é possível saber quantas vezes o aluno foi reprovado, se é ou não disciplinado, em quais matérias apresenta maior ou menor dificuldade, se foi punido e as razões de sua punição etc. Do mesmo modo, na fábrica, quantas vezes o operário chegou atrasado, quantas faltas já teve, quais suas condições de saúde, quantos e quais foram os acidentes sofridos etc. Enfim, cada um se torna um caso que requer determinado tratamento.
Para Foucault, os indivíduos não nascem prontos, não têm essência ou natureza, eles são criados pelas atividades que desenvolvem com o seu corpo. Para esse filósofo, somos corpo e nada mais. O que fazemos com o corpo é o que nos define, e não apenas o que é dito sobre nós mesmos.
1. Como nós pensamos o indivíduo?
2. Como a linguagem é capaz de dizer o indivíduo? Explique.
3. Por que os indicadores se diferenciam dos nomes próprios? Dê exemplo.
4. O que fazemos ao dizer o próprio nome? Explique.
5. O que é Ipseidade, segundo Ricoeur?
6. Segundo Ricoeur, o que propõe a ideologia individualista?
7. Fale sobre a atenção com o corpo a partir da Era Moderna.
8. O que nós somos, segundo Foucault?
9. De quais práticas disciplinares Foucault está falando e de onde elas vieram?
10. Explique resumidamente as práticas disciplinares: A distribuição; O controle do tempo; O controle das gêneses.
11. Quais são os recursos e procedimentos para um bom adestramento?
12. Para Foucault, os indivíduos não nascem prontos, não têm essência ou natureza, por quê?


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